Anotações para recordar que o passado foi uma merda
O pessimismo encontra um grande leito confortável em todas as classes sociais porque alimenta nossa natural tendência a desconfiar do novo, dos avanços de qualquer tipo. Quando envelhecemos, esquecemos com frequência que os males que hoje em dia denunciamos costumavam ser iguais ou piores quando éramos jovens.
Ademais, nosso cérebro tende a limar as asperezas do passado, a contemplar mais suas virtudes que seus defeitos, à medida que decorre o tempo. Precisamente por isso, nos faz mais felizes comprar experiências (viagens, jantares, etc.) que objetos. Porque os objetos a cada vez se tornam mais velhos, mas as experiências cada vez adquirem mais conotações positivas, convertem-se em lembranças duradouras que nos produzem satisfação.
Mas o passado era escuro e decadente e viver no campo era perigoso e fonte de contínuos problemas: quem sonha em viver na Idade Média, mudaria rapidamente de opinião se cheirasse o hálito ou qualquer outra parte do corpo de uma garota de então ou se tivesse uma bela dor de dente, mas isso é quase nada se pensarmos que:
- O índice de mortalidade de muitas sociedades antigas (0,5% da população ao ano) equivaleria a dois bilhões de pessoas mortas no século XX, em vez dos cem milhões;
- O infanticídio era um recurso comum em tempos difíceis e a taxa de mortalidade infantil em todo o mundo oscilava entre 20% e 30%.
- As doenças estavam também sempre rondando por perto: gangrena, tétano e muitos tipos de parasitas prontos para matar silenciosamente.
- A escravidão era comum e alimentação nem tanto.
- Não existia o politicamente incorreto, tudo era correto.
- Mulheres? Não era nada bom nascer com uma racha no meio das pernas... não mesmo.
- Sem energia elétrica, sabonete, água quente, pão, livros, filmes, metal, papel...
Quando conhecer uma dessas pessoas que chegam ao extremo de afirmar que prefeririam ter vivido em uma idade antiga, supostamente mais prazerosa, é só lhes recordar disso e logo correrão para suas casas com todos os confortos que só o presente pode nos dar.
É verdade, há quem, por absurda idealização, ache que estes mundos do passado podiam ser melhores que o mundo presente. Pois não foram, jamais foram: para a imensa maioria dos quem viveram ali, constituíam um inferno, ainda que aceitável só porque não conheciam nada melhor e porque, ignorantes, criam ardentemente em paraísos religiosos (aliás, isso não mudou muito para alguns).
Mas se fosse possível dizer a qualquer pai ou mãe de 300.000 a.C., de 300 a.C., de 300 d.C. e até mesmo de 1.900 d.C., que chegaria um tempo em que poderia levar seu filho doente a um hospital com enfermeiros, médicos, antibióticos, analgésicos e tudo o mais, e que depois poderia levar o rebento para casa para banhá-lo com água quentinha que sai direto de uma torneira a um preço ridículo -sim, ridículo: a lenha e o carvão custavam o salário de um mês-, colocá-lo em uma cama sem piolhos, carrapatos ou pulgas e dar-lhe de comer todo tipo de alimentos e água filtrada... ao certo não compreenderia, porém se pudesse vislumbrar, ao certo pensaria que este é o paraíso dos deuses benevolentes (todos eles) de suas profecias. E então assinaria qualquer coisa para nunca mais sair daqui, de 2012. Ainda que é quase certo que todos teriam que usar um chamegão digital.
Pese ao fatalismo dos pessimistas, a humanidade demonstrou constantemente sua capacidade de melhorar, de evoluir, de progredir para um futuro melhor. Para isso tivemos que nos desfazer de dogmas imbecis, de um montão de obstáculos, e lembranças do passado, de estudar profundamente e transformar a realidade de maneira radical, às vezes pacífica e às vezes violenta. E teremos que seguir fazendo se quisermos ir a frente e melhor. Em todo caso, nostalgia é bom, valeu a pena e segue valendo, mas que continue lá incólume como uma lembrança boa do passado. Prefiro morrer com morfina no mais vagabundo dos hospitais de nosso tempo que sem morfina em qualquer palácio real cheio de música e felicidade do medievo.
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Comentários
" ...se cheirasse o hálito ou qualquer outra parte do corpo de uma garota de então... "
Óra, acho que o mesmo se daria em relação à um garoto, não?
E, morreu tanta criança nessa época, e mesmo assim chegamos aos 7 bilhões...
É necessário morrer muita gente todos os dias, em todas as épocas, do contrário o mundo já teria explodido de tanta gente.
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