Por que somos tão tontos?
Como explicam admiravelmente autores como o psicólogo Gary Marcus, no ótimo livro "Kluge", ou o neurologista David Linden, no também excelente "Touch: The Science of Hand, Heart, and Mind", nosso cérebro é uma geringonça, um amontoado de remendos que assombra não por sua harmonia senão porque parece funcionar o suficientemente bem apenas para nos manter vivos.
É que nosso cérebro é propenso às ilusões visuais, auditivas e até cognitivas, que ficam em evidência nas falácias que cometemos diariamente. O pior de tudo, não obstante, é que nem sequer somos conscientes da imperfeição que é nossa maneira de pensar e como facilmente somos enganados pelos nossos sentidos.
Somos racionais por um fio. De fato, a maioria do tempo, somos mais estúpidos do que racionais. A tudo isso somemos que tendemos a inventar explicações para encher nossas lacunas de conhecimento, ainda que essas explicações sejam incoerentes.
Para manter um pouco (só um pouco) à margem nossa estupidez de série, há muito pouco tempo (pouquíssimo, se colocarmos em perspectiva com os milhares de anos que corremos por este planeta), um grupo de pessoas articulou o método científico. Algo bem como um juiz que arbitra, questiona e censura as veleidades de nosso cérebro propenso aos erros, à opinião e todo o demais.
O método científico não só põe em suspeita a opinião pessoal senão que continuamente coloca em dúvida a si mesmo: tudo o que aprova é temporário e está sujeito a correção. Podem existir cientistas dogmáticos, assim como há pessoas dogmáticas, mas nunca suas ideias poderão ser dogmáticas em frente ao escrutínio do método científico: o que importa aqui são as ideias, não as pessoas. Assim, de passagem, jogamos por terra outra falácia muito própria de nossa mente imperfeita: a falácia de autoridade. As ideias, pois, não são totalmente respeitadas. Se a ciência respeitasse as ideias deixaria de ser ciência e se converteria em religião. A ciência dinamita as ideias para construir ideias melhores.
Mas o método científico segue confinado em laboratórios e outros ambientes estritamente acadêmicos. Fora deles é um ave rara, uma mutação intelectual ainda muito nova e minoritária. Esgrimir o método científico na vida cotidiana é uma empreitada quase quixotesca, ainda mais se levarmos em conta que, assim que nascemos, somos já submetidos a rituais mágicos de aspersão de água benta. Quando adquirimos certa lucidez mental e nos formulamos perguntas mediamente sérias, recebemos de pais e mestres respostas idiotas sobre a origem do mundo, da moral, dos sentimentos e outras coisas importantes.
Se não temos a sorte de cursar uma escola onde a professora de Ciências não seja uma carola que malsine (porque não sabe) o que é o método científico em profundidade, que não mostre que há enganos no relativismo, que não demonstre que a ciência não é uma coisa de laboratório senão uma maneira de pensar, então acabaremos desperdiçando dias e anos aprendendo de cor doutrinas religiosas, literárias e filosóficas que existem totalmente desvinculadas da ciência, como se ainda vivêssemos na Idade Média.
Mitos e superstições, por questões econômicas e de indigência intelectual, são ensinados inclusive em universidades; em farmácias ainda vendem produtos inócuos que não superam ensaios clínicos; no entretenimento de massas o herói será sempre aquele tipo bronco que acredita sem provas, o que se conecte com seu eu infantil ou o que tente perpetuar o Natal. Seguiremos ad infinitum com a velha cantilena de que "você não crê só porque não viu", quando uma das primeiras prevenções do método científico é que, ainda que ante do seus olhos surja o fantasma de Tiradentes afirmando ser o fantasma de Tiradentes, você não pode começar a crer em fantasmas por essa razão tão débil. Mas creremos, porque as raízes de nossos pensamentos seguem conectadas com a parte mais primitiva de nosso cérebro, porque não temos uma boa tesoura intelectual para cortar a raiz.
Isso permanece assim porque os pedantes facundos são de letras (e orgulhosos de sê-lo), porque muitos intelectuais que engrandecemos não conhecem nem os princípios da termodinâmica, porque em qualquer livraria a demarcação de ciências costuma ser a que menos tem prateleiras; porque nos meios de comunicação não há tantas seções de ciência como de qualquer outra coisa; porque a tarouquice do esoterismo rulez e a lógica da ciência é chata. Ironicamente, desde o Círculo de Viena, a ciência sempre trata de ser clara em suas exposições, mas as pessoas parecem ficar fascinadas com as exposições abstrusas de outras disciplinas ainda que o exposto seja bem mais simples.
Pela manhã, a maior parte de nós acorda com o som de um relógio, acende a luz elétrica, abre a torneira de água fria ou quente, pega alimentos da geladeira, prepara o café da manhã usando o gás ou o microondas, coloca os óculos, se necessário, usa roupa e sapatos produzidos industrialmente, liga o alarme após fechar a porta de casa, desce ao térreo ou à garagem em um elevador, se move por meios motorizados de todos os tipos, trabalha em fábricas e escritórios amplamente automatizados, usa continuamente telefones e computadores, vê televisão e vai ao cinema, se não quiser ter filhos usa anticoncepcionais, se ficar doente faz exames médicos ou radiológicos, toma remédios e trata de prolongar sua vida o máximo possível de maneira artificial.
Portanto, a maioria de nós deveria saber perfeitamente que o mundo está regulado por leis mecânicas, termodinâmicas, eletromagnéticas, nucleares, químicas e biológicas às quais apelamos, direta ou indiretamente, de maneira constante. E então, por que uma boa parte de nós se preocupa pelo sal derramado, muda de direção se um gato preto atravessa a rua, evita passar por debaixo de uma escada apoiada em uma parede, bate na madeira se vê um carro fúnebre, conhece seu signo do zodíaco, lê e escuta horóscopos, compra produtos herbanários, pratica a homeopatia e acupuntura, se trata por iridologia e benzedeiras, consulta cartomantes e videntes, crê nos extraterrestres, nos anjos, nos demônios, nas Virgens que choram sangue, sai em peregrinação, se ilude com os efeitos das preces sobre sua vida, e destina 10% de sua renda à igreja?
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Comentários
Ok, Admin. Queria falar mais e perguntar mais sobre o que eu escrevi mas percebo que desviei um tantinho do assunto central do post.
Obrigada pelo comentário.
Valeu Daniel!!!
Sim, Sol, eu também tomo muito chá. As ervas todas têm seus princípios ativos e a maior parte dos fármacos descende delas. Mas quando falo em herbanário me refiro a estes loucos que receitam chá de losna com arnica para curar câncer. Ou, pior, que indicam plantas venenosas como mamona, olho de cabra ou trompeta de anjo para curar determinadas doenças (estas plantas matam). Ademais, como comumente se diz: a diferença da vitamina para o veneno está na dose.
Já a sua pergunta sobre racionalismo, acho que é muito pessoal. Eu o escolhi porque a minha experiência em viver o mundo de uma forma sensível como meio de aproximação com o conhecimento nunca deu certo. Meu sexto sentido é cego, surdo, mudo e órfão, então eu preferi manter as minhas deduções, escolhas e apostas com base naquilo que já vivi ou que meu razoamento julgue melhor. Evidentemente que quase nunca dá certo (rssss), mas pelo menos são escolhas minhas.
É o "penso, logo existo" .
Não somos só isso.
Os exemplos do post são bobos para mim mas não foram para a minha irmã com um câncer terminal.
Ela começou a frequentar uma igreja qq, nem lembro qual, para conseguir se manter "viva" até a morte.
E ela sabia que ia morrer. Entende?
Nesse exato momento da minha vida não consigo responder a uma pergunta que lateja na minha cabeça: Se formos racionais demais não corremos o risco de enlouquecer?
Mas as ervas têm realmente princípios ativos não?
Chá de camomila ou de erva cidreira realmente me dão uma noite de sono mais tranquila ou sou sugestionável?
E na maioria das vezes que passo mal do fígado por causa de excessos alimentares, noto alguns vasos bem avermelhados na esclera. E ai fica fácil alguém dizer: você "sofre" de problemas digestivos.
Excelente matéria. A melhor que li hoje. e muito provavelmente a melhor da semana também. Obrigado por tantos posts interessantes.
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