Casualidade versus causalidade - Ou porque as fraudes pseudocientíficas parecem funcionar
É bastante habitual que os crentes nas mais diversas fraudes pseudocientíficas, como curas milagrosas e pseudo-medicamentos holísticos, apresentem como provas irrefutáveis de sua particular verdade a existência de casos nos quais um indivíduo depois de rezar, tomar água (ou qualquer outra substância) benta, ter limpado o karma, feito um descarrego ou alinhado os chacras adequadamente, se curou de uma doença mais ou menos grave. Mas este tipo de curas são provas válidas que demonstram a eficácia do milagroso tratamento?
Em primeiro lugar o que estas pessoas costumam esquecer é que ainda que apresentem como prova o caso de um ou vários indivíduos curados com o mencionado "tratamento", há que se levar em conta o conjunto dos indivíduos que fizeram uso do mesmo para tentar curar suas afecções. Assim é muito normal que em um determinado momento uma quantidade enorme de pessoas (milhares ou milhões) estejam fazendo algo inútil como por exemplo rezando ou tomando bolinhas de sacarose -em forma de medicamento homeopático- para curar uma doença. Motivo pelo qual para estudar adequadamente o problema é necessário ter uma simples noção básica: compreender o conceito de probabilidade e entender a diferença existente entre casualidade e a causalidade.
Assim, imaginemos que um milhão de pessoas que padecem uma determinada doença -por exemplo uma alergia- que tomam durante um mês exato todos os dias às dez em ponto da manhã -não pode ser outra hora- uma infusão de hortelã colhida previamente por uma virgem impúbere -não vale um homem nem uma mulher deflorada e tampouco uma adulta virgem- exclusivamente durante a fase da lua cheia -não vale em qualquer outro dia do mês- poderão curar sua doença. Seguramente que em um ano depois teremos dez, cem ou inclusive milhares de pessoas que assegurarão a familiares, amigos, colegas de trabalho e por suposto em redes sociais como o Facebook, que este particular tratamento funciona. Por que? Pois por uma mistura de diversos fatores, todos eles baseados na casualidade.
Algumas das pessoas "curadas" simplesmente estavam mal diagnosticadas e não padeciam de alergia ainda que assim acreditassem, outros se auto-convenceram de que este estranho e particular "tratamento" deve ser muito efetivo quando tem tantas restrições e ainda que sigam sofrendo da doença pensam que agora estão muito melhor do que antes, outros terão se curado naturalmente porque seu sistema imunológico mudou por fatores desconhecidos ou conseguiu controlar a doença, outros terão alterado inadvertidamente seu modo de vida e já não se encontram tão expostos ao agente causante da alergia e assim sucessivamente com outros múltiplos fatores desconhecidos.
Para discriminar estes casos entre curas a esmo (casualidade) e as devidas ao suposto medicamento (causalidade), na medicina científica realizam ensaios denominados de duplo-cego. Em nosso exemplo anterior, do conjunto das pessoas diagnosticadas com o mesmo tipo de alergia criam dois grupos iguais que contenham indivíduos com as mesmas características. Assim não é adequado por exemplo que em um grupo de doentes todos sejam homens e no outro mulheres, ou que tenha mais gente jovem em um grupo em relação ao outro e assim sucessivamente.
Antes de começar o estudo os dois grupos devem ser idênticos ou o mais parecidos possível. Agora a todos os pacientes são administrados medicamentos iguais e indiferenciáveis em cor, sabor, textura, aspecto, etc. Um grupo de pacientes receberá o medicamento que contêm nosso famoso ingrediente curativo e o outro grupo placebo. Por suposto e isto é muito importante, durante todo o ensaio nem os médicos que receitam nem os enfermeiros devem saber quais são uns e outros. Assim evita-se que os profissionais sugestionem, ainda que de forma indireta, os pacientes ou que doentes muito sensíveis ou perspicazes emocionalmente detectem algo positivo ou negativo no comportamento do profissional de saúde que possa influir no resultado. E após finalizar o tratamento tudo é analisado.
Em geral, a maioria das pessoas tende a pensar que se algo -por exemplo um pseudo-medicamento ou qualquer tipo de superstição- não funciona então ninguém deveria se curar com o mesmo. Mas múltiplos estudos demonstraram que esta ideia é errônea, já que a simples administração de um placebo implica que uma percentagem significativa dos pacientes comentam melhorias ou inclusive cura. Segundo a doença estudada a percentagem de efetividade do placebo varia chegando em alguns casos até um espantoso 75% quando testam alguns antidepressivos. Por suposto esta percentagem é sempre maior quanto menos grave seja a doença ou mais susceptível seja de ser alterada pelo comportamento ou o estado de ânimo do paciente, daí o altíssimo efeito placebo existente em algumas doenças como a depressão ou a ansiedade.
Como o efeito placebo está associado às expectativas (ou às crenças) de cura do paciente então seu potencial varia com a apresentação do placebo. Assim tomar dois comprimidos em vez de um, ou um cápsula maior, mais colorida ou que nos dizem que é bem mais cara que outra aumenta o efeito placebo. O comprimido também é menos funcional que a cápsula, que por sua vez é inferior em efeitos a uma injeção, e todas eles são superados por um suposto tratamento em uma máquina que quanto maior for sua espetaculosidade tenderá a criar maior efeito placebo.
O efeito placebo também aparece em crianças muito pequenas ou inclusive em animais já que os bebês são muito sensíveis aos estados de ânimo de seus progenitores e os animais aos de seus tratadores ou donos. De modo que para poder assegurar que algo (medicamento ou tratamento) funciona, a percentagem de curas no grupo do elemento a comprovar deve ser significativamente maior do que no do grupo placebo.
E este método é válido para provar qualquer tipo de tratamento médico, incluídos os mais estranhos ou espirituais. Assim, há alguns anos cientistas estudaram o possível efeito terapêutico de uma oração cristã em 1.800 pacientes coronários norte-americanos hospitalizados. Os doentes foram divididos em 3 grupos: um terço dos pacientes foi objeto de orações após serem informados de que podiam ou não receber a mencionada oração, outro terço não recebeu oração alguma ainda que também informaram que podiam ou não receber orações por sua cura e o restante foi receptor de orações para a melhoria de sua saúde após serem informados que existiam pessoas que estavam rezando por eles. Pois bem, os resultados, como não podia ser de outra maneira, indicaram que não havia nenhuma diferença entre receber ou não orações sanitárias... nada... niente... nadica de nada
Mas o mais curioso deste estudo é que teve um efeito relacionado a reza: um maior número de pacientes que foram informados de que havia alguém rezando por eles (59%) sofreram complicações cardíacas posteriores, comparados com apenas 51% dos doentes que não tinham a certeza se tinham sido objeto ou não de preces. Os autores do estudo concluíram que o fato de saber que pessoas estranhas estavam rezando por sua saúde poderia ter causado em alguns pacientes algum tipo de ansiedade que piorou sua situação médica. Tal e qual indicou um dos autores do estudo:
- "Este fato pode ter feito com que se sentissem inseguros e que tenha os levado a se perguntar: será que estou tão ruim assim que já tem gente rezando pela minha alma?"
Um sinal indicativo de que a sugestão é muito poderosa e de que também existe o contrário ao efeito placebo, o chamado efeito nocebo. Estes dados deveriam alertar o profissional médico contra a tendência dos mesmos de detalhar para o paciente tim-tim por tim-tim a gravidade da doença e as prolixas descrições dos possíveis efeitos colaterais ou complicações que podem derivar dos testes que os pacientes são submetidos, em seu diagnóstico e tratamento, porque tudo isso pode fazer com que piore o estado do paciente ao se ver saturado por tanta informação negativa detalhada.
Ah, sim... só para terminar, resta indicar que este trabalho sobre o possível papel sanitário da oração cristã foi financiado pela Fundação Templeton, entidade dedicada ao estudo da espiritualidade humana, durante 8 anos e custou mais de 2,3 milhões de dólares. Pelo que este é um exemplo muito adequado para responder a todos aqueles defensores das mais esquisitas terapias alternativo-holísticas.
Deve-se malgastar o dinheiro, muitas vezes público, em determinar se uma "terapia" que, não esqueçamos, habitualmente costuma estar em contradição com o que sabemos na atualidade de anatomia, fisiologia, química, microbiologia ou medicina, é efetiva ou não só porque um par de dissidentes da ciência asseguram sem nenhuma prova que encontraram um maravilhoso, barato e eficaz tratamento para curar qualquer doença ou inclusive todas as doenças humanas juntas?
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Comentários
Correção:
Ótima matéria. Muito esclarecedora para o tempo em que vivemos.
Ótima matéria. Muito esclarecedora poderá o tempo em que vivemos.
Excelente!!!!!! Precisamos eliminar as fantasias humanas!
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